28.6.13

Cantares suprimidos

I

[…]

II

Uns momentos em que vamos caindo para as fendas que traçamos nos nossos dias.
A tinta que cai e que não escreve o que se pretende;
Uns verbos mal-entendidos para o prolongar de nós mesmos.
Ficamos perpetuados no que queremos ser,
Nas estradas do porvir e nas entranhas do dever de nos amarmos a nós próprios.

Passamos a vestir umas peles que nos despem do que tendemos a ser,
Avultando os corpos amontoados ao longo das casas já antigas.
A maestria de encantar em fonéticas desconhecidas
A serpente que se quer enfeitiçada, coberta pelo sal da sua pele.
Uma pele renovada, por fim.

III

Os perfumes que nos inebriam incendeiam-nos com a ousadia
Dos que se esquecem de fazer jus ao sentido do olfacto agora atiçado.
Seja então a caxemira dos cheiros dos bancos de jardim
Ou a leviandade das noites de verão ao luar
Que nos atormentem as vestes.
O jogo agora já eleva os espelhos e desfazem os anúncios
De terras temerosas como as que temos vindo a pisar.

Absorvemos os nossos passos que produzem sons em uníssono
Para engrandecer as calmarias interiores e os desapegos anteriores.
Novos rumos aliados aos cantos também eles antigos
E que agora desafinam as vozes que deixam de ser de cada um
Para perfazer o mistério final.
Construímos uma ode ao velho desapego para agora sermos livres de nos juntarmos.
Assim somos mais eternos e mais puros.
No branco das luzes que ao longe nos iluminam,
No escuro das noites quentes que nos escondem mais da urbe que nos dá a presença.

O som, posterior, deixou as consternações adversas
Para fazer relembrar o futuro que se assimila.
Cantamos assim, divagamos momentaneamente em velocidades pouco certas
Para se adiantar a proximidade dos tempos áureos
E iluminados pelas candeias já perpetuadas.
Assim ficamos, para mais tarde nos lembrarmos do que fomos
E do que tanto quisemos ser,
Apelando à sempiterna sensação de saudade.

IV

Entretanto, vamo-nos tornando enormes em relógios que nos contam
Como o tempo é duradouro ou, bem ao invés, meramente escasso
E vamos repensando o abstracto para dar novas formas ao concreto.
Seguimos pelas avançadas horas ao vivificar planos maiores
Que nos secundam na matéria.

Os cheiros de plantas orientais permanecem e dão cor
Às formas que o escuro do quarto apaga.
É esse o amontoado belo do que somos.

Construímos então o levantar numa ode eterna e cantante
Para depois lhe atribuirmos um profundo tema como o amor
Ou a vasta condição humana.
Que estejam as duas ligadas pelo beijo dos cegos das noites de verão
Dando espaço a novos espaços,
Gritando gritos a novos gritos,
Correndo caminhos que foram agora abertos.

Um novo mar e um novo mundo, por fim.
Dizemos que somos nós e que ali navegamos fazendo frente à máquina
Que continuamos a enfrentar e a puxar contra a nossa condição.
Gritamos que existimos e damos conta que é a liberdade da matéria,
Se somos nós que a compomos.
Se assim existimos, ouvem-se depois ao longe os cânticos eternos e tão místicos
Das liberdades mais desprendidas.

Um grupo de pessoas que se conhece, pela primeira vez,
Dá obra ao atiçar dos cheiros orientais, na azáfama de pintar mais cores
Que ainda existem no abstracto do que nunca imaginámos ser.
Abre-se o cofre para fazer crescer o âmago das contínuas vitórias.
Menos puras.

V

Continuamos na espera das horas para de manhã,
Não a manhã que agora momentaneamente me aparece ao largo do velho largo,
E exclamamos o que escrevemos enquanto revoltamos o interior em perdas de sono.
Talvez a concretude da manhã me assuste demais para me refugiar no frio da madrugada,
Sem as tentações de começos de novos dias e de novos pensares.
Talvez as nossas normas nos chamem a cumprir toda a extensão do largo, do mundo, do rio
Para podermos dizer que somos nós.

Ali estamos avultados em figuras já de si hediondas aos olhares antigos,
Horrendas aos que vêm.

O escrever como que o toque da presença forte no frio da janela,
O toque do cheiro oriental e, por fim,
O toque do corpo expressionista que nos diz a plenitude do ser sem que tenhamos
A vantagem de existirmos e de podermos ser.
Talvez cante acima do chilrear matinal 
para fazer sobressair a condição inclinada do que sempre fomos. 

Os ares da manhã que se aproxima, agora, para os medos que virão
com o raiar do dia que chega. 
Talvez feche os olhos e acorde com a noite que nos deitou. 
Eternidade.